23.12.05

luz

que o mar se faça de sonhos
que ondas agitem sorrisos
que o vento vos beije ternamente

e lá longe, muito longe
onde as amarras são cabelos finos
que se agitam como velas
com as mãos de luar
cuidem desse sonho

que tudo seja apenas luz
que se agite, inquieta
no vosso olhar

7.12.05

que a terra comece a girar

que a terra comece a girar
como flor na mão de uma mulher
que nos olhos dela se cumpra o destino
de ser um só

que a terra comece a girar
em sentido contrário ao desejo
de todos os amantes

que a terra comece a girar
como uma mulher apaixonada
doce, terna e para sempre encantada

que a terra comece a girar
e a luz se apague nos meus olhos cansados
que o mundo sujo se lave naquele rio
de desejo de um dia ser ser um só

5.12.05

hoje

Deixei que a noite chegasse devagar.

O frio que me recebeu na chegada à casa de pedra ficou para jantar.
Acendi a lareira.

Hoje, sozinho, deixei-me envolver pela neblina. Deixei-me conquistar pelos braços doces de um amor antigo.

Hoje é o dia.
O dia em que o mundo fica pendurado no amor de dois amantes.
Hoje o mundo mudou.
Inventou-se a paixão efémera de um beijo às escondidas.

Hoje é noite.
Na serra não há lugar à vida dos amantes.
Aqui a neblina envolve e mata cada segundo da nossa memória.Somos dois, hoje!

Acendi o charuto, aconcheguei o casaco de lã, encostei-me à varanda e deixei que a neblina nua me abraçe.

Hoje, na noite, não há lugar ao amor.

21.9.05

azul

é de azul o quadro que quero pintar
é de azul que te quero vestir
é azul o que quero plantar
é azul o que desejo sentir

é azul o mar dos meus sonhos
é azul cor do céu que te quero ver
é azul a paz nos teus olhos
é no azul que quero viver

16.9.05

olha

… vês-me? Aqui. A acenar.
Sou eu. Esta brisa que sentes.
Não olhas?
Viste como corria?
Consegui ver-te pela janela
Ainda te beijei
… mas não notaste.
Agora rodopio em espirais infinitas
Só. Sem o teu sorriso.

6.9.05

Os Sete Sapatos Sujos

Mia Couto

"Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei Sete Sapatos Sujos que necessitamos devdeixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico:
- Primeiro Sapato - A ideia de que os culpados são sempre os outros.
- Segundo Sapato - A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho.
- Terceiro Sapato - O preconceito de que quem critica é um inimigo.
- Quarto Sapato - A ideia de que mudar as palavras muda a realidade.
- Quinto Sapato - A vergonha de ser pobre e o culto das aparências.
- Sexto Sapato - A passividade perante a injustiça.
- Sétimo Sapato - A ideia de que, para sermos modernos, temos de imitar os outros.

22.8.05

g8

sentaram-se à mesa.
não havia nada para dizer!
começaram por comer o mundo
... acharam África dura de roer

dançaram de chapéu na mão
batiam palmas de contentamento.
... eles iam morrer da ilusão.
recusaram a comer no chão

no fim, levantaram-se
abanaram os rabos
... deitaram muitos sorrisos
e partiram em direcção ao paraíso.

5.8.05

espera

separo-me de tudo para te conquistar
talvez não saibas o que é ficar
para te ver partir

talvez tudo o que sempre desejei
queríamos o mundo
na nossa mão

abri as asas
ficaste sentada a ver-me voar
sem querer partir
vi-te de longe sempre a sorrir
pronta para amar

voam

voam os abutres.
os porcos ganharam
alegrai-vos, povo
perdemos, nós
que sentimos
garras e esperança
em olhos doces

24.7.05

sempre

é isto que nos prende à vida.
não nos deixa cair
um sitio algum
do qual
ninguém possa sair.
mas podemos continuar
sem parar, sempre
no mesmo sitio
sem que isso importe
a quem nos traçou o destino

talvez

talvez

só o horizonte me diga onde estou.
perdi um bocado de mim
deixei-o para trás

é tarde
vejo-me de longe
não me saúdo.

bela é a vida
que se perde.

24.4.05

moçambique

de olhos perdidos percorri teu corpo
desejo-te como se fosses uma mulher
levas-me no vento da tarde
deixas-me no sol que nasce no mar

olha-me nos olhos, diz que não gostas
que te olhe assim apaixonado
que queres as acácias só para ti
que a tua beleza é só para os viajantes

desejo-te nos olhos de todos que passam
nos beijos daqueles que abusam de ti
não sei me queres tomar no teu mar
não sei se me deixas deitar nas tuas praias

mas... deixa-me ficar!

que vida

que dor é esta
que quasi me distrai da vida

que sonho é este
que me prende à vida

que desejo é este
que me deixa apaixonado pela vida

que carinho é este
que se quer perto da vida

apaixonado?
vai dar uma volta pela vida!

22.4.05

é Abril, embora não pareça!

Sei de um lagarto amarelo que lentamente sobe uma parede. Aos olhos de todos parece imóvel, mas para mim move-se. Lentamente é certo, mas move-se. Agora está sobre um quadro imitando uma parece de tijolo de tons de avermelhados. Aproximei-me um pouco mais do quadro.

sei de um tempo onde as flores azuis
se confundem com o mar
sei do desespero de quem não morre por querer
simplesmente, desejo que as flores dancem em volta de ti

Porque me falas assim? É Abril, não reparas nos meses do ano? O lagarto amarelo continuou a subir o quadro. Para onde vais?

sai daí. sai de ti.
sobe os estores do quotidiano e olha.
espanta-te.
os dias enlouquecem iguais.
sucedem-se, encadeados.
na Praça de Nemésis pintam-se palavras.
colunas de palavras. muitas palavras.

é Abril, embora não pareça.

pássaros de seda cantam as recordações
de silêncios consentidos, forçados e amordaçados.
barcos de papel deslizam em nesgas de luz.
folhas vermelhas cobrem a copa frondosa da multidão
e há cegueira bastante para não ver as flores.

Abril? Um mês igual a todos os outros. O lagarto amarelo nada disse, continuou a subir vagarosamente o quadro. Porque sobes o quadro?

tive um mar, só meu
construí uma ilha, só minha
deixei-me abraçar pelo vento
sentado na areia, via o Sol partir
sentado na praia, via a Lua chegar
fui, então, navegante
fui um descobridor
o mar era, então, um murmúrio
a ilha era, toda ela um encanto

agora, procuro o meu mar
mas tudo é tão estupidamente real.

Deixei-o. Não se incomodam os sonhos de ninguém, por mais irreais que possam parecer. Até sempre, lagarto amarelo. Até um dia.

hoje parti

hoje parti sem dizer a ninguém
não quis que me visses assim
é que nada tenho para te dizer

agora, corro pelas águas de abril

peço-te que não me procures

são sombras que passam por mim
e já não és tu que me prende à vida

12.4.05

olhos de longe

entre o dia e a noite
a diferença mora longe
na descoberta de um sentimento

nos olhos tristes
os olhares marcados
pelo mar, pelo desejo
de uma nova vida

que passa sempre ao lado
de quem tem, apenas, o olhar
para amar

Uma visão de Maputo...

Rostos marcados
Por uma vida que lhes foi madrasta...
Sorrisos que escondem lágrimas;
Olhos tristes,
Profundos e imensos.
Escuros pelo sofrimento,
Claros pela esperança.
Corpo no hoje
Alma no ontem
Sem nada para o amanhã...

Vidas no limite
Entre o belo e a amargura
Entre a saudade e a esperança.
Entre a harmonia e a agitação,
De cores, pessoas, vegetação...

Gostos incomparáveis,
Sabores que nos fazem planar...
Elevando-nos às nuvens,
Permitindo-nos tocar no céu
E bailar com os anjos
Ao som de uma melodia,
Que não invade apenas os ouvidos,
Mas apodera-se de todo o teu ser...

Paisagens...
Ai paisagens...
Cenários que só se sonham,
Imagens que não nos atrevemos a imaginar
Sentimentos que emergem,
Vontades que se soltam,
Vidas que se transformam,
Rostos que se iluminam,
Corpos que planam,
Sem nem querer saber o seu destino...

Pessoas amáveis,
Que na sua vida tão simples,
Acolhem quem lhes sorri...
Abraçam quem lhes dá um olhar
Apaixonam quem as ouve.
Pessoas que não te vêm
Olham-te, sentem-te
Recebem-te como ninguém.

De onde vens?
Para onde vais?
Não importa...
Estás aqui e
Aqui ficarás,
Ainda que não presente...

Perfeição...
Imperfeição...
Harmonia...
Turbulência...
Alegria...
Tristeza...
Um misto,
O limite entre tudo, entre nada
Algo que prende,
Algo que envolve,
Onde nos perdemos,
Onde deixamos de nós
Onde finalmente...
Temos a nossa saudade...


carla carvalho

19.3.05

dias que passam

são os dias que passam
e eu aqui parado

crio a imagem de ti

são de luz as mãos
que me apertam
neste estado de inquietude

são desejos moribundos
deste sol que não vai nascer

há palavras

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor,
de esperança,
De imenso amor,
de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas,
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill

6.3.05

a chuva

a chuva que não chega
tenho que disfarçar as lágrimas
com este sequeiro

vagueio em desertos

vou passar por aí
para me despedir de ti.

17.1.05

torga

"Com um ósculo vo-lo entrego.
Chama-se Miguel Torga. Somos irmãos e temos a mesma riqueza.
Mas há dias reparámos nesta coisa simples: para que aos vossos olhos um de nós surgisse Cristo, necessariamente o outro tinha de fazer de Judas. E eu sacrifiquei-me (...).
Apesar disso, despeço-me da cena e dou a minha palavra de honra que não reapareço..."

15.1.05

olhos

ajudo-te com essas pedaços de vida
ajudo-te porque te sei apaixonada
deixo-te voar por entre os braços
nadas no teus olhos triste
cobertos de mágoa

um cego em paris


Era uma vez um cego sentado na calçada em Paris, com um boné a seus pés e um pedaço de madeira que, escrito com giz branco dizia: «Por favor, ajude-me, sou cego».

Um publicitário, da área de criação, que passava em frente a ele, parou e viu que o boné tinha umas poucas de moedas. Sem pedir licença, pegou no cartaz, virou-o, pegou no giz e escreveu outro anúncio. Voltou a colocar o pedaço de madeira aos pés do cego e foi-se embora. Pela tarde, o publicitário voltou a passar em frente ao cego que pedia esmola. Agora, o seu boné estava cheio de notas e moedas.

O cego reconheceu as pisadas e perguntou-lhe se havia sido ele quem reescreveu o seu cartaz, querendo saber o que havia escrito ali.

O publicitário respondeu: «Nada que não esteja de acordo com o seu anúncio, mas com outras palavras.»
Sorriu e continuou seu caminho.

O cego nunca soube, mas o seu novo cartaz dizia: «Hoje é Primavera em Paris, e eu não posso vê-la.»
Mudar a estratégia, quando nada nos acontece, pode trazer novas perspectivas.