23.12.04

a coisa

«Natal

Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grandes e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.
Hoje é dia de Natal.
- Mas quando será de todos?»


Sidónio Muralha

13.12.04

canto negro (josé régio)

A minha gloria é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vos
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avos,

E vos amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peca definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se levantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por ai.


11.12.04

17 de janeiro

Torga morre no dia 17 de janeiro, estava sentado no sofá quando ouvi a notícia. Aguardava o nascimento da minha filha. Os sentimentos atrapalhavam-se dentro de mim, um misto de amargura e euforia. Triste. Fiquei triste quando ouvi a notícia. Mas a minha filha estava a nascer. Tinha que a ir ver - era pequena e frágil. Muito bonita, essencialmente perfeita. Sabia-o por que lhe contei todos os dedos. A minha filha compensou e fez-me esquecer a morte de torga. E depois ele passou, nos meus olhos, a viver através dela. É assim, ainda, hoje. Estou perto do nascimento da minha filha, muito perto.

êxtase (miguel torga)

Terra, minha medida!
Com que ternura te encontro
Sempre inteira nos sentidos,
Sempre redonda nos olhos,
Sempre segura nos pés,
Sempre a cheirar a fermento!
Terra amada!
Em qualquer sítio e momento,
Enrugada ou descampada,
Nunca te desconheci!
Berço do meu sofrimento,
Cabes em mim, e eu em ti!

Monforte do Alentejo, 28 de Dezembro de 1968

8.12.04

natal

são brancos os Natais da minha memória. Pela neve que não caia, mas pela pureza em que vivia. Acreditava que um dia tudo podia ser diferente, pela mão de um mágico o acordar traria a nova invenção do mundo. As manhas calmas do Natal, o cheiro, o sabor... correr para o borralho e encontrar o sapato cheio de chocolates, nozes, meias e outras roupas. Nunca no Natal tive coisas que não me fossem úteis, tirando as gluseimas, daí que acreditasse no pai natal justo. Apenas me dava coisas na medida das minhas poucas necessidades. Justo, é a palavra correcta. As brincadeiras corriam por conta da imaginação.

mais tarde, aprendi que o meu pai natal não existia. Nada tinha que ver com o natal, mas porque não tinha pai. Não fiquei triste por não ter pai, afinal seria igual a muitos outros meninos. Conformei-me assim! Continuou a ser branco o natal na minha memória. Branco e justo.

agora, desapareceu a brancura do meu natal. Deixou de ser justo.

neste dia, que agora começa, ainda acredito que possa ser mágico. Acredito que possa ser justo. Acredito que as brincadeiras dos nossos meninos possam correr por conta da sua imaginação. Acredito. Pode ser esta a palavra que move a vida.

o natal está aí, é todo vosso. Desejo que seja diferente para cada um de vós, mas que se torne naquilo em que verdadeiramente acreditam.

viagem

... da nossa viagem!

Do meu amor e de um elefante!

Do elefante exibicionista
Do meu amor equilibrista
De sentimentos
De todos os nascimentos de sóis
De todas as mortes de tardes
De um amor que se quer forte
Como um elefante
Equilibrista de sentimentos


juventino miranda

Juventino Miranda, era um revoltado contra o sistema. Não sabia o que era o sistema, mas Juventino era revoltado. Morreu. Da estória da morte, e da vida, se vai dar conta nestas e noutras linhas

Neste ano de 2317, era o terceiro Natal que se passava. Cristo havia descido à terra e era agora presidente da organização de comércio livre. Tirano e absoluto como só um filho de divindade pode ser. Cristo, de seu nome verdadeiro Jesus Nascimento Cristo, era preto nascido na Africa do Sul. A sua terra tinha desaparecido nas profundezas do mar, fruto do aquecimento global que se tinha iniciado trinta anos antes.

Cristo afirmava ter nascido sete vezes no ano, no entanto só três delas deveriam ser comemoradas. Por obrigação todos os habitantes da terra eram obrigados a comprarem presentes. Cristo andava contente.

Um espinho apenas estava atravessado na garganta de Cristo. Juventino Miranda, o revolucionário. Muito antes dos livros terem sido proibidos lia tudo o que havia para ler. Falava de uma Cuba que ninguém conhecia e de um tal Ché, falava de liberdade e de justiça. Juventino tinha sido preso e condenado a nunca mais, no resto da sua vida, por os pés no chão. Juventino pairava, suspenso por uma estranha força. Exemplo para todos aqueles que lutavam contra a organização de comércio livre.

Cristo não tolerava tais formas de arrogância. Juventino continuava a falar para quem o queria ouvir, agora suspenso no ar a lembrar um anjo - mau, é certo.

Juventino era um sonhador, que num més de Dezembro de 2316 fez uma autêntica revolução.

É da luta de Juventino contra Cristo que se fará as próximas estórias. Uma estória onde o sonho morre com um sonhador, sem final feliz nem heróis.

demão (herberto helder)

Retorna à escuridão
o rosto: entre centelhas, ficasse tão maduro quando de te tragar estremecesses, que o animassem os elementos: um interior: um limite do mundo, e se afinasse como um galho de marfim cheio de lume, que fosse um instrumento de crescer na terra: um golpe nela, abraço com a mão coroada, até á bolsa com alua dentro, no ovo está o astro, se pelos dedos nesse rosto te plantasses todo na riqueza do sono, soldado a nervos: osso, feixe de fibras tímpanos, e as faíscas saltando pelas unhas as deixassem ígneas, e a veia arpoasse igneamente a massa muscular, ou a aorta sorvesse a matéria tremenda ao seu abismo, e te encharcasse até ás pálpebras essa púrpura por válvulas contra os dentes. nos fundamentos há vezes em que és ligeiro ao movimento da água, ou nas paredes onde os canos se cruzam como um corpo onde se cruzam órgãos tubos, um alento das coisas: dos tecidos do mundo, e por exemplo se a louça e o inox brilhados de dentro: à mesa e a madeira respira mais rápida e uma grande massa orgânica magnifica cercada de membros como um homem essa pinças na cabeça entre as meninges extraindo uma estrela, os canais luminosos da cabeça iluminam-te todo, iluminas-te quando se arranca a língua e há um soluço da fala, levantas-te soberbamente ao rosto, como a vara do vedor fica acesa pelas ramas de água, como que salga o aparelho do corpo e o torna substancia alta giratória ou se fulgura a trama cristalográfica terrifica da musica se levanta entre os dedos e cordas fundido de sangue e ar no escuro:
música
o medo do poder, esta ferida
tão de um nó de músculos estrangulando
uma leveza
o barro violento, a manobra
das vozes. Fechas os olhos e as
coisas não te vêem,
as mãos brilham-te abertas.


Herberto Helder

3.12.04

dia um. retalhos

hoje quase que tropecei em mim.

disse-me que gostava de me ver
partilhar a alma e depois partir

não se pode separar a vida, pudesse eu viver sem querer
mas nunca

corri para fora de mim